quinta-feira, 30 de abril de 2015

A importância da memória


Talvez sem memória fosse possível ver e ouvir, mas os conteúdos da visão e da audição careceriam de qualquer significado


ilustração Carlos Piecho

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Fantástico mundo o meu

Fantástico mundo o meu
de pedagogia solitária
onde a afeição
entra em simbiose involuntária
com a satisfação de si próprio
onde etapas de infância e juventude
são como labaredas na plenitude
agarradas a pés de azinho
quentes vivas unidas
regras livremente consentidas
sem honras nem doações de alinho

Fantástico mundo o meu
como bastardo sem registo
em aparatos de jogos simbólicos
bagos de romã caroços de laranja
migalhas de pão improvisadas
ganham vida e satisfação
infância rebelde e quebradiça
como cabelo revolto de libertação

Fantástico mundo o meu
onde o contributo de crescimento
são portas fechadas que abrem a vida
que desenrola em chão de trilho
pontas de ferro certeza e decisão
capas de corda no pião
manual de genética de pai para filho
escola ensinante de bonecos de pano
chumaços de trapo em ângulo exacto
de galhos bifurcados atirando a alvo intacto
como pedras em elástico de fisgas

Fantástico mundo o meu
onde a cobertura das árvores
são cúmplices do brincar imaginário
onde a fundura dos poços
são espelho de alma extraordinário
onde a sossega da noite
contrasta com o frio do lençol
onde se ouvem cantigas de rouxinol

Fantástico mundo meu
onde a candeia traz luz de esmola
e a infância não tem escola
ajeito-me num torrão de terra
com os três dedos da mão direita
agarro o lápis na ponta estreita
e risco os primeiros traços  
nas costas do papel estreito
que embrulha o conduto
fantástico mundo meu
onde a infância é só produto

Júlia Acabado

terça-feira, 28 de abril de 2015

Familiarismo


« Os portugueses eram todos parentes. O familiarismo induzia uma vasta promiscuidade social, a famosa "gregaridade" lusitana. É claro que outras clivagens - verticais, hierárquicas ou de classe - atenuavam este efeito, mas enquanto consequência da atmosfera política opressiva (era uma maneira dela se abrigar, insuflando afectividade pessoal numa vida materialmente, intelectualmente, espiritualmente e existencialmente pobre), atravessava as próprias diferenças sociais. Com estilos e intensidades diferentes, reinava na alta burguesia como no povo.»


in PORTUGAL, HOJE O Medo de Existir José Gil  2004

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Sobrevoando a minha história

Sobrevoando a minha história
Que me calhou á nascença, sem opção,
Não escolhi, adaptei-me, tornei-me pensador
Eduquei-me sem saber o lugar das letras
Das palavras bonitas e desconhecidas
Que em frases se juntavam enfeitiçadas
Os livros eram condutores neutros
Não me levavam a lugar nenhum
Outros meninos caminhavam em direcção
Á justiça, á condição de ser criança
Ninguém me perguntou se queria aprender

Sobrevoando a minha história
Não escolhi o estandarte da pobreza
Estranha forma de me iniciar no mundo
Libertei-me da infância e do alfabeto
Fracturei desejos e sonhos 
Não sabia ler, nem escrever
Nem reflectir sobre a minha própria condição
Faltava-me o requisito, o saber soletrar
Procurei em vão a minha autenticidade
Contava histórias avulso,
Recitava versos como um papagaio
Suave caminho do saber anónimo

Sobrevoando a minha história
Não escolhi uma identidade estilhaçada
Os mais velhos revezavam-se a contar contos
Não nego o legado precioso
Carregado de simbolismo e crenças
Códigos de mímica, sons e pausas maliciosas
Enfatizavam Deus, Pátria e Família
Universo mental curioso e analfabeto
Reportório deslocado no tempo
Epopeias ancestrais com heróis e vilões
Terminando em desenlace feliz

Sobrevoando a minha história
Prefácio de infância sem letras
Recordo a casa de telhas e taipa
A tonalidade das cores do campo
A valsa das papoilas vermelhas
Bandeando ao vento
O cheiro da terra
No domingo festeiro
Calçava os sapatos
Penteava a trança
Caída nas costas
Descia a rua
Arrojando a mão
Pelo muro da escola

Júlia Acabado

domingo, 26 de abril de 2015

Caracterização geral e concisa do Estado Novo




Para assinalar os dez anos de governo de Salazar, é editada, em 1938, uma série de sete cartazes intitulada “A Lição de Salazar”, distribuída por todas as escolas primárias do país. 


O Estado Novo (1933-1974) foi um regime autoritário, conservador, nacionalista, corporativista de Estado de inspiração fascista, parcialmente católica e tradicionalista, de cariz antiliberal, antiparlamentarista, anticomunista, e colonialista, que vigorou em Portugal sob a Segunda República. 

O regime criou a sua própria estrutura de Estado e um aparelho repressivo (PIDE, colónias penais para presos políticos, etc.) característico dos chamados Estados policiais, apoiando-se na censura, na propaganda, nas organizações paramilitares (Legião Portuguesa), nas organizações juvenis (Mocidade Portuguesa), no culto do líder e na Igreja Católica.




1940, "Mulheres de Operários da CUF em Greve", Barreiro, de Arquivo de "O Século"



sábado, 25 de abril de 2015

Sopa de Entulho Lusa Nação



Sai uma sopa de entulho
Que assegure a sobrevivência
Que forneça energia como o sol
Guarnece a terra por excelência
Não seja menu light snack ligeiro

Sopa de entulho sabor caseiro
Aroma verde improviso e cruzado
Onde se enterre fome indevida
Comida é pasto ração e arte

Sopa de entulho em qualquer parte
Coza a cenoura e alho medicinal
Um toque de louro real
Couve-galega couve lombarda
Transporte de seiva elaborada
Lisa crespa ou ondulante
Labaças marujas e saramagos salteados

Sopa de entulho legumes variados
Feijão manteiga feijão encarnado
Macio em lume brando apurado
Uma colher de café de cominhos
Dente de alho batata aos cubinhos
Abóbora laxante arroz em porção

Sopa de entulho lusa nação
Cheiro verde bom e farto
Ferro cálcio e vitaminas
Cruzamento e selecção de proteínas
Talher de prata copo de cristal

Sopa de entulho prato principal
Coentro benéfico e azeite sagrado
Bom paladar tempero apurado
Nabo da horta cebola ás rodelas
Colher de pau duas mexidelas
Para realçar sal grosso de mergulho

Sai uma sopa de entulho
Combinação de origem vegetal
Iguarias com poderes naturais
Comidinha de cardápio artesanal
De natureza singela
Ícone sem pedegree
Alquimia da panela


Júlia Acabado

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Cueiros de pano-cru


Moças e crianças rumando ao rio
Cantam e riem ao romper da aurora
Sabão em pedra e trouxas de suja roupa
Fogareiros panelas e taleigos de chita
Risos e entusiasmo trilham caminhos fora
Levantando poeira em terra bendita
Claridade soberba no céu a nu
Desfazem-se fardos de lençóis
Mantas cueiros de pano-cru
Colorido de roupa sob a sanha do sol
Crianças dormindo em quadro moldurado
Sem perfumante ou clareante
Lavam desejo e amargura em água doce
As mãos apanham o rio petulante
Que entre os dedos se derrama
Cueiros de pano cru remendado
Coram debaixo de sol assanhado
Moças do rio batem a roupa
Na sedosa pedra polida
Seus poros refrescam na água em despedida
Num fluxo sem pressa e composto
Enquanto o vento escorrido lhes lambe o rosto
Esculturas egocêntricas abraçam o rio
Que desliza entre sinuosas curvas
Abrindo as margens carregadas de cio
Moças do rio folheiam dobras da roupa
Enterram o silêncio em trovas quentes
Num ritmo brando doce e crente
Abrigo seguro de vocação
Moças do rio suas crias arrimam
Ao peito com ternura e sedução
Enquanto estas lhe sentem o gosto
Tateiam seus seios com o beiço sequioso
Em doce movimento de respinga
O branco leite
sugam morno do mamilo da mãe
Moças do rio torcem cueiros 
Metamorfoseando primavera em mocidade
Asas de veludo fino de tocado
Remam á outra margem
Coração ingénuo domado
Entre o desejo e veleidade

Júlia Acabado

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Penas Mãe



Alvas madrugadas ou cálidas tardes
Rendida á ternura e ao calor
A voz da mãe aconchega seu bebé
Em ornamentos e rimas de amor
Coloridas silhuetas sonoras
Ó  ó  ó  ó  ó

Perfeita tradução de sentimentos
Letras nuas de justiça
Frágil existência de palavras
Voz melodiosa timbre de noviça
Enlevo tépido embala o sono
Ó  ó  ó  ó  ó

Também em sons delicados
Fresca aragem límpido gorjeio
De letras se libertam pássaros  

Asas ao sonho escolha sem receio
Feminino brilho de suaves ilusões
Ó  ó  ó  ó  ó

Unidos de forma inconfundível
Deusa da procriação Afrodite
Como pássaro tão alto subindo
Eros o mais belo dos imortais

Da espuma do mar flor abrindo
Ó  ó  ó  ó  ó

Flauta doce quietude infinita
No ninho aquecido solta emoção
Amorosos lábios estrela bendita
Poemas nascem em oração
Ó  ó  ó  ó  ó 


Júlia Acabado